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Folha de São Paulo - Miguel de Almeida

Luiz Aquila, Olhos de Caleidoscópio


Luiz Aquila da Rocha Miranda, 42, é um artista com olhos de caleidoscópio, incansável montador de imagens e lapidador de soluções. Explicação do artista: “Tenho um olho crítico que não descansa”. A partir de amanhã, às 21h, na Galeria São Paulo, a abertura de sua exposição, com quinze telas, candidamente intitulada “Pinturas” e que só diz de paixão antiga e renovada do artista. Paixão pela pintura, apenas isso.

Este e o próximo mês darão muito trabalho a Luiz Aquila: além da exposição paulista, fez uma mostra individual de desenhos na Funarte-Rio, fará uma de pinturas (seis telas) na carioca Galeria Paulo Klabin, participará de uma terceira no Parque Lage e, por fim, será mestre de paraíso em “Luiz Aquila por Toda a Cidade” – com obras expostas em diversos lugares do Rio de Janeiro.

De todas, certamente, é esta última mostra que retribuirá o carinho do artista pela sua cidade. “Posso dizer que meu estímulo, nos últimos tempos, vem da paisagem carioca e tudo que a cerca”, diz, um tom de voz tranqüilo e pensativo. “Gosto do contraste do Rio e o meio natural: ruídos da cidade, a natureza gigantesca. Dialética viva que está o tempo inteiro na cidade, diferente de outras construídas (ou nascidas) em planícies ou platôs.”

O homem e a cidade, velha união, já notada em versos pelos gregos e pelo francês Arthur Rimbaud. E do Rio, além da paisagem enlouquecida (“bonita por natureza”, diria o compositor), Aquila é apaixonado pela luz do sol. Pinta quase só de dia, embora às vezes atravesse a noite duelando com alguma tela. “Acho melhor pintar de dia. Meus quadros são diurnos”, avalia. Ou madrigais, concordamos. “As sombras de dias são mais bonitas, coloridas”.

De janeiro a agosto, ficou em lua-de-mel com sua pintura. Quase só pintou. De dia, naturalmente. Ou cruzando a noite, se diante de um impasse. Cavaleiro indômito, não abandona suas batalhas. No caso, ao entrar em um beco sem luz é amedrontador. “Daí meus hábitos deixam de ser inabaláveis”, diz. Ou seja, ele detesta abandonar uma obra quando ela está envolvida em um impasse. “Gosto de deixá-la caminhando, se resolvendo”, explica. Soluções: começa a desenhar, lê jornal, assiste televisão, telefona a algum amigo, até que “pegue o bandido desprevenido”. Apenas não é um ataque, mas uma solução. “Não vou contra ele. Pego um dos movimentos e supero essa barreira da imobilidade”. O bandido quase sempre é abatido pela madrugada. De manhã, o artista avalia o resultado da batalha e prossegue refeito em alegrias.

Sim, Luiz Aquila anda alegre com a pintura e gosta dessa convivência diária, tomada de voluptuosa paixão. “Veja: é como se fosse um quadro só, tanto essa exposição, quanto a do Rio. Não sei onde começa um e termina o outro. Pintei sob uma intensidade absurda. Foi como se eu fizesse um cruzeiro com ela; os dois em um iate”.

De volta à terra, fica a sensação da paixão. Aquila aproveita e usa uma imagem gostosa e tranqüila (às vezes): “É o caso de uma velha namorada. Você estava exaltado e continua atento, apaixonado. No lugar da mulher, é a pintura.” Ele concorda, assim, que na arte brasileira, avaliadas as tendências e escolas, encontra-se apenas essa definição: “Aquila e sua pintura”. Apontado como “pai” da Geração-80, sua obra parece distante de ser alcançada pelos jovens em sua densidade e intuição. “Eu, o pai da Geração 80? Sei lá – nunca liguei para modas, e de repente minhas razões e emoções coincidem com as do pessoal jovem”, escreveu Aquila no Folhetim do último domingo (n˚ 448).

Então, uma visita a seu olho crítico. “A gente tem o impulso de separar nossos setores. Não dá, porque eu te vejo, ouço. As situações são mais globais que analíticas. Procuro, também, jamais separá-las, dissociá-las”, diz. O velho axioma de sua geração (e de outras) aparece na conversa e o artista o fulmina: “Não separo razão da emoção. Acho que não existe arte puramente emocional, como não há arte totalmente racional”.

A conjugação de razão e emoção, pensa Aquila, gera a chance da arte, o que sustenta o vôo do artista. “Mostramos a possibilidade de o ser humano voltar a ser inteiro, de superar sua solidão. Na arte, você não fica tão só”, comenta, puxando a lembrança do poeta e ensaísta Octavio Paz que escreveu sobre a perda de imagem do mundo, flagrada pelos poetas, e por eles mesmos vivenciada na angústia.

Aquila faz um movimento de esgrimista sobre os pensamentos e espeta: “Paz escreve que ‘poesia é quando os versos rompem os diques do poema’. Digo: quando pintura rompe os limites de um quadro, consegue o fluxo, ela mesma pergunta e responde”. Solução: vida e arte, vida e morte; o movimento e o espaço impregnando a sensibilidade desconfiada.

Nas telas do artista, a presença da dança, do cinema e seus próprios conceitos sobre a pintura. A dança aparece por ser casado com uma bailarina (Regina Miranda) e pela sua curiosidade diante dos movimentos, da interligação de tempo e espaço que há nas duas manifestações. “Ao lado da minha casa, tem um atelier de dança. Vejo a relação do tempo e do movimento que também está na arte do dançarino e que é um jeito de se pensar dinamicamente o espaço. Em outro lado, as marcas do pincel sobre a tela”.

Nada é premeditado, crê o artista antes e depois de seu processo criativo. “O tema da minha exposição é a pintura”, diz. “Como estou sensível ao meu tempo, me sinto aberto a todas as manifestações”, comenta, para depois repetir um pensamento: “Antes de acontecer, não sei como é que se dá; depois de pronto, não me interessa mais”.

Durante o processo, o mistério. Um enigma a não ser desvendado ou sequer questionado pela razão. O mistério sucumbe diante da emoção. “Há um véu sobre o processo criativo. Até que ponto ele te leva ou que você o leva, a gente não está seguro. É outra questão, talvez a mesma: até que ponto você empurra ou é empurrado pelo pincel?”.

De todos os processos, talvez o mais fácil e indolor seja o batizado das telas. No gesto, Aquila deixa pistas, fornece indicações, exprime conceitos. “São rápidos. E só os batizo na hora de fazer os catálogos”, comenta. Então, procura títulos vagos capazes de abrir possibilidades de interpretação. “Quero que dêem maneiras variadas de leituras do trabalho. São coisas verbais que representam meus conceitos sobre a pintura”. Exemplos: “Quadro verde, amarelo, azul e branco”, “O caçador e a pintura”, “O cavaleiro e a pintura esperançosa”, “Recuerdo de la pintura” e, por fim, título dúbio e arrebatador, “Bis coito”. Um bis para a pintura de Aquila, pois.


Miguel de Almeida, 26 de agosto de 1985. Folha de São Paulo



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