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catálogo da mostra "Dez Têmperas" - Lélia Coelho Frota

Uma paisagem americana


Num momento difícil para a validação do gesto de pintar, o trabalho de Aquila Rocha Miranda, com a simplicidade aparente da competência, atesta o sempre possível surgimento da imaginação criadora.

A impregnação da natureza, tônica permanente no seu fazer anterior, aparece aqui como produto daquela imaginação aérea de que nos fala Bachelard, ao assimilar as formas inventivas do pensamento aos elementos do ar, do fogo, da terra e da água.

A aerofotogrametria da paisagem limenha, que o olho lírico/crítico de Aquila realiza, revela aquele "grão de extrema altura" a que se refere Valéry, evidenciado na desmaterialização do factual, no esbatimento emotivo próprio da imaginação aérea. O discurso emotivo, em Aquila, traduz-se por uma gama tonal de verdes-água, cinzas, amarelos e azuis rarefeitos, vibrados num fio de absorta afinação. Neste paisagismo do retângulo e do quadrado, a fluidez tonal vige absoluta. A linha, ou antes, a cor linear - pois falamos de um senhor colorista - impele ondulação e movimento à superfície nublada, descendo a níveis arqueológicos ou construindo, ágil, o perfil da montanha andina.

Uma consciência sabedora da crise filosófica e social que crispa a civilização ocidental retempera-se, aqui, na grande fonte primeva da natureza pelo hábil imbricamento do retângulo e do quadrado a cores que são nuvens, águas e montanhas.

Esta é uma concepção que discute, pela sua formulação visual, toda uma corrente asséptica e formalista gerada a partir de um Albers ou de um Mondrian: em Aquila são o quadrado e o retângulo que se naturalizam, e não a paisagem que se geometriza. Aqui, as formas geométricas, sem deixar de inscrever a sua nítida presença na composição, têm gênese simultânea à dos signos terrestres elementares que, por sua vez, se desmaterializam num permanente dinamismo tonal, mantendo contudo a associação de origem.

Pensaríamos numa organicidade de recorte geométrico, numa resposta americana ao rigor construtivista europeu, que postulou a eliminação da natureza do quadro da vida do homem, com tristes ressonâncias até a arte do agora. O mérito singular deste artista é manipular a técnica tradicional do guache sobre o suporte do papel, refletindo toda uma discussão da estética contemporânea, sem jamais perder a emoção do assunto para recair num conceitualismo estéril. Como tem de seu para dizer, Aquila não precisa recorrer aos artifícios macerados do kitsch internacional nem a um posado pauperismo populista, logo absorvidos pelo circuito de museus e galerias, para assinalar a sua participação efetiva na contemporaneidade. Por um acertado distanciamento do circunstancial, ele nos dá notícias visuais atualíssimas e permanentes, que valorizam, afinal, a difícil descoberta que é estar e gostar de estar-no-mundo.

Entre a consciência crítica que olha as coisas como pretexto para a mentação subjetiva das formas, e o impacto do universo revelado ao homem em seu esplendor de macrocosmo, Aquila Rocha Miranda descerra, pessoalíssimo, o seu território em surdina.


Assim é que seis quadrados, interpenetrando-se, podem transformar-se em perfil de montanhas, ou cumes de cordilheira construírem vértices de quadrados, numa geografia prismática vizinha à dos cristais.

Aquela identificação de psique com o mundo visível, fonte primária para a genuinidade de qualquer ação humana, faz com que na obra aberta de Aquila o quadrado - colocado sobre um lado para estabilizar a composição, sobre um ângulo para dinamizá-la, ou desenvolvido até a projeção do cubo - contenha/descontenha magicamente rios, montanhas e céu, para que reaprendamos a contemplá-los com liberdade.


Lélia Coelho Frota, Petrópolis 1977 Texto publicado no catálogo da mostra "Dez Têmperas", na Galeria Divulgação e Pesquisa, 1977.

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